GENEALOGIA DE UM POETA

Pois bem - me apresento:
Sou filho da Estupidez e do Descaso
irmão primogênito da Solidão
da necessidade ríspida de ter irmãos
Com tais armaduras
Reino sobre corpos inválidos e nus
...marginália dos desgraçados
dos malditos
dos sórdidos
dos cordeiros sem alma
e sem pasto...

ou talvez eu não seja tudo isso
mas afirme ser
para conseguir chamar a atenção
daqueles que acreditam ser o que não são
para talvez conseguir enganar a atenção
daqueles que acreditam ser o que não são
e não podem ser, e jamais poderão ser
E camuflam suas vidas num estado ficcional
com a devida prudência de desligar a TV
logo após as notícias em tempo real
da Guerra no Oriente Médio
mas ignoram em suas camisetas do “Che” a posição geográfica da base de Guantánamo
(inescrupulosamente fudidos nas mãos dessa merda de juventude ignóbil).

Esses mal percebem o que consomem
e me enrolam numa seda fina
e me lambuzam com suas línguas úmidas
e me fumam em baforadas inexpressivas.

a quem reclamar o contrabando adquirido?
a quem louvar quando a imagem se parte?
Não me importuna a surdez do mundo
os revólveres soarão ainda mais estridentes.

Sim. Venham: amontoem-se ao meu redor e ceguem-me
Dilacerem minhas córneas cuidadosamente
pois tantos outros as necessitam bem mais
e eu as utilizo de maneira indevida e pouca
Tudo em mim é CULPA
Arranquem-me das mazelas que me adornam
Sangrem os meus punhos em excessiva filtragem
em busca da quantidade devida do sangue precioso
para transfusões futuras nos seus pares.
Tudo em ti é CULPA
E o que buscaremos num mundo
onde a Culpa é a exceção dos fatos?

Mesmo em face pretendo todo o ato
e dou à luz a todo tipo de moleque
Feito os becos das cidades que se erguem arrogantes
e proliferam ratos virulentos e sádicos
que invadem as bolsas da burguesia
e se perdem entre brincos e maquiagens contrabandeadas
Me atinge a vileza ao tentar educá-los
reabilitá-los à irmandade entre tais
E antecipadamente me entristeço ao ser tocado pela Felicidade:
- a felicidade, senhores, é um prelúdio à depressão.
Nunca confie num homem que busca a felicidade.

Toda negligência atemporal hospeda-se em minhas costas
no peso daquilo que carrego
na responsabilidade de liderar uma revolução
sendo eu apenas um poeta ou um pedinte
levemente talhado no cotidiano das ruas.

Um amontoado de roupas sujas habita meu dorso diário rotineiro e ininterrupto
Um amontoado de roupas sujas é o que me faz acreditar que amanhã estarei disposto
disposto talvez a não mais usá-las
a levá-las ao auxílio das máquinas de triturar
resumindo-as em retalhos e lembranças
E isso pouco me aflige
As lojas me propõem tantas outras diversamente coloridas
e divertidamente entediantes
Mas as busco veementemente
pois assim o meu domingo é bem mais saudável
e assim sou aceito e compreendido entre os da minha legião.

Percebo o tédio transpor meus dedos
e arranco-me dos dedos que trago há tempos
Tenho olhos de amontoadas tristezas
e celebro a melancolia em mim:
- sou grato por isso
Doou preces aos homens
e ponho a minha educação distante de Deus
Bebo água benta em goladas volumosas
me alimento de hóstia e pão
como se a minha fome se desse
pela mera necessidade de manter a condição de alimentar-me em curso
e jamais me propondo cativo do alimento em si
mas sem perceber sendo cativo daqueles que me alimentam
Como fazem os cães aos pulos variantes nos braços de seus adestradores
Como fazem os rebanhos aos olhos atentos dos pastores calados.
Necessitaremos sempre de um líder?

Do vinho sou abstêmio
Não pretendo manchar minha roupa nova e dominical
Ousaria eu manchá-la?

Hoje tenho a surdez em meus braços
Afago o seu nariz
fazendo com que esqueça sua horrenda conduta
Queria tê-la sempre presente em meu bolso direito
pois é de fácil acesso à mão mais calma que possuo
No bolso esquerdo guardaria uma dolla ainda não amarrotada
para dar-lhe quando despertar dum sono confuso
Bem sei que o carrasco sofre não pela barbárie do ato
mas sim por ter que carregar o machado por toda a vida.

Afilhado da Loucura:
em meu adormecer
tive todas as flores
provei de todas elas
muitas sem nem tocar
...os melhores beijos
tive das bocas que jamais ousei...

Com devida prudência perceberão:
tenho olhos secos
mãos ásperas
e um timbre de voz salubre
Os meus dedos são breves
ou são longos os objetos que busco
Orixás me guiam e me abastecem com suas armas
Mas antes – envio um ofício
com pedidos de licença ao Vaticano
pois ainda não me enviaram a carteirinha de ecumênico
nem mesmo fui excomungado ainda.

Vivo vagarosamente em meu auxílio
dentro de mim
quase sempre me perco
Retorno apenas quando todos os meus mortos estão em paz
e o barulho que produzem
não mais me amedronta.

Da esperança que não alimento edifico meus vícios
A lança que te ergo
aceita-a sem preocupação cristã
À faca: pão e mesa
Distribuída ao pendular da matéria
Não se deve ver beleza
no produto concreto daquilo que se beija
Constroem-se os hábitos e as mobílias
baseados nos cômodos da casa
Ou será o contrário?
Não sei. Definitivamente, não sei
E fui corrompido a não saber
pela quantidade de alucinógenos que me entupiram quando criança
Sei que bebo a quantidade devida
do líquido que as fábricas de copo
me induzem sutilmente a beber
e armazeno todo o resto
em recipientes construídos milimetricamente
com o intuito de adestrar a minha sede rotineira
e toda a minha esperança
Como se fosse necessário e a TV não executasse sua função devidamente
Me parece que até mesmo meu estômago
sofre com isso
e guarda compulsoriamente
cada golada que arrebato
com a precisa e gentil adaptação dos músculos do meu estômago.

Como orquestro meus sonhos
com as mesmas notas
que ouço rotineiramente advindas das Rádios
Como pinto minha tela de ilusão
com as mesmas cores
que absorvo rotineiramente advindas da tela do cinema
Como cumpro minha Arte a partir da arte de outros
e o carimbo latente do Cristianismo.

I
I
I
à parte de tudo isso?
quando estarei enfim
I
I
I
I
I
I
I
I

O Homem é produto da Fábrica e do Medo
E ele que se adapte ao câncer
pois deve moldar seu paladar
ao dissabor do alimento que digere
Como deve modular sua audição
à música que ouve
E seguiremos por um adestramento imperceptível
como todo adestramento válido
que alcança sua extensão exata
e o resultado aguardado agrada a todos:
é quando o bicho que se adestra
não se percebe adestrado
e a vida prossegue imperceptivelmente alienada
numa anestesia coletiva
para que não possamos gritar a dor
e assim acordar os nossos vizinhos em desespero.

nos alimentos;
nas flores;
nas artes;
nos cartões de Natal;
nas bocetas cobiçadas das meninas do interior
A indústria implantou um anestésico vicioso
de aroma agradável em cada um deles
Assim a Liberdade e a Felicidade
são palácios onde dormimos num chão frio e úmido
mas que jamais ousaremos negligenciar.

Quisera flor para toda primavera;
Quisera sol para todo riso;
Quisera dor para toda marca;
Quisera coisa-além.
O mundo deveria ser mais autônomo e fugir de seu completo anonimato.

Sou o que virá.
E o que se perde na distância do tempo.
Na desconstrução dos hábitos.
Em ingênuos comportamentos.
Assim me anuncio entre vós
cuspido pelo requinte de vitórias parcas
e glórias efêmeras
de um heroísmo falso e batalhas previamente perdidas
de superações ultrapassadas e vontades mudas
Carrego um cetro imbecil
ornamentado pelo desgaste de uma dinastia apática.


Rafael Sarajevo
 
FANTASCÓPIO CARIRI © 2010 | Designer by Martins WEB DESIGNER